Quais os desdobramentos da arte contemporânea para as subjetividades? De que forma seu surgimento modificou a relação dos sujeitos com a criação artística, com a fruição estética, Cad. Bras. Saúde Mental, Vol 1, no1, jan-abr. 2009 CD-ROM)
com os modos de compreensão da arte, com as diversas aplicações da arte a outros campos e a outras práticas? Estas e tantas outras questões podem ser levantadas no intuito de auxiliar a aproximação entre a arte contemporânea e o universo da saúde mental.
É antiga a articulação entre arte e loucura. No Brasil, a experiência precursora é a do crítico de artes e psiquiatra Osório César (1896-1980), que em 1923, no Hospital Psiquiátrico do Juqueri, em São Paulo, incentiva a criação artística dos pacientes, bem como a exposição de suas obras em locais formalmente reservados à arte. Na década de 1950, obras dos alunos da ELAP2 são apresentadas em diversos espaços no Brasil e no exterior (MAM/SP, Maison Nationale de Chareton/Paris, MASP, Clube dos Artistas e Amigos da Arte/SP e na Galeria Prestes Maia/SP). Atualmente, parte da coleção produzida pela ELAP faz parte do acervo do MASP, entretanto, a circulação desta coleção é praticamente inexistente, tendo alguns de seus artistas, Aurora Cursino dos Santos e outros não identificados, participado da mostra "Brasil: Psicanálise e Modernismo" no MAM do Rio de Janeiro e no próprio MASP. Um dos mais importantes e geniais artistas brasileiros, Arthur Bispo do Rosário, produziu a maior parte de sua obra enquanto habitava um hospital psiquiátrico, a antiga Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro. Sua obra circula hoje pelo mundo inteiro, participando de exposições em espaços dedicados à arte contemporânea, tendo o artista representado o Brasil na 46ª Bienal de Veneza. É importante dizer que a legitimação de Bispo do Rosario, e de sua obra, pelo campo das Artes só ocorreu após sua morte, em 1989. A partir daí, sua obra começa a circular.
No cenário internacional também encontramos importantes e antigas articulações entre os dois campos. No início do século XX, o historiador de arte e médico Hans Prinzhorn começou a reunir um acervo de obras criadas pelos pacientes do Hospital Psiquiátrico
2 Escola Livre de Artes Plásticas do Hospital Psiquiátrico do Juqueri. Cad. Bras. Saúde Mental, Vol 1, no1, jan-abr. 2009 CD-ROM)
Universitário de Heidelberg, estimulado pela qualidade artística destas criações. Em 1945, Jean Dubuffet (1901 - 1985), cunhou o termo arte bruta para definir novas formas de arte, distantes da produção oficial, executadas por pessoas alheias à cultura artística. Desde então obras de pacientes psiquiátricos são incorporadas a coleções deste segmento.
Não é possível desarticular o reconhecimento e valorização destas produções do contexto cultural em que elas se desenrolaram. Na virada do intenso século XX, sob as influências das inovações propostas no plano das idéias, pela psicanálise e filosofia, e sob o peso das crises econômicas e políticas, a arte incorpora ao seu universo as novas questões trazidas à tona. Problematiza, principalmente, a hegemonia da racionalidade, valorizando o inconsciente, o caráter irracionalista da arte e a imaginação como expressão direta do espírito do artista. A partir deste cenário a produção artística de pacientes psiquiátricos passa a ser legitimada pela arte.
É importante dizer que os discursos e práticas que se dedicam à loucura também sofreram transformações. O final do século XX assistiu à superação da lobotomia pelas práticas de reabilitação psicossocial, ao salto da noção de doença mental para saúde mental, à valorização do sujeito que sofre e sua inserção no social, em detrimento da doença. Há uma significativa variação, uma mudança de posicionamento frente à loucura, que critica as práticas e os discursos já estabelecidos em função de uma nova proposta. Problematizadas as práticas psiquiátricas tradicionais, as artes plásticas despontam como um caminho alternativo à cronificação em que redundava a terapêutica aplicada.
Estabelecidas as razões originárias da interface entre arte e saúde mental, nos interessa pensar suas atuais articulações, a partir das questões instauradas pela arte contemporânea. Se nos fixarmos na década de 1960, com o advento da arte pop e do minimalismo, e suas propostas de rompimento em relação ao hermetismo da arte moderna, podemos estabelecer Cad. Bras. Saúde Mental, Vol 1, no1, jan-abr. 2009 CD-ROM)
uma espécie de ponto de partida da arte contemporânea, que se norteia, justamente, por uma problematização e ruptura em relação ao instituído. A arte contemporânea explode os enquadramentos sociais e artísticos do modernismo, abrindo-se a experiências culturais díspares. Estas novas orientações são tentativas de dirigir a arte às coisas do mundo, à realidade urbana e ao mundo da tecnologia. Articulam diferentes linguagens; teatro, dança, música, literatura, pintura e etc. Colocam em questão o caráter das representações artísticas e a própria definição de arte.
Sabemos que algumas propostas de trabalho com arte em saúde mental, no Brasil, ainda se embasam em objetivos puramente terapêuticos, onde a produção artística é vista como sintoma da loucura, ficando restrita às interpretações dos conteúdos internos e biográficos do artista. Nestas experiências o que importa é o sintoma e não a obra.
É preciso pensar outras propostas, propostas que incorporarem os conceitos e as discussões da arte contemporânea. Incorporar as questões trazidas pela arte contemporânea rompe a tendência da psiquiatria tradicional de afastar, pela segregação da diferença, o sujeito de seu tempo, tornando-o extemporâneo. Atualiza o sujeito por colocá-lo no centro das questões lançadas pelos modos de vida na contemporaneidade, convida-os para estarem ali, presente em suas experiências criativas, produtoras de vida.
Além disso, a arte inclui socialmente o indivíduo excluso e dá a ele autonomia a medida que ele utiliza a arte como instrumento de expressão pessoal, ampliando a observação artística. Com o reconhecimento do artista o território e o diálogo em torno das diferenças aumenta, o que é benéfico tanto para a sociedade quanto para o próprio artista, promovendo assim a diversidade cultural.
É nesse sentido que devemos caminhar, com o uso das artes com a finalidade de melhorar a realidade da nossa socidade permitindo o diálogo com as diferenças. Assim teremos uma sociedade mais humana, inclusiva e que saiba respeitar e conviver com as diferenças.
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